É da terceira geração de uma família de emigrantes portugueses no Grão-Ducado. No fado encontrou uma forma de cantar o seu amor por Portugal, a casa para onde sonha um dia voltar.
Há um ritual que Magaly cumpre religiosamente antes de entrar em cena. Uma hora antes do espetáculo, tem de estar sozinha, a ouvir fado. Coloca os fones nos ouvidos e deita-se no palco. Está no mundo dela. Na maior parte das vezes, ouve Ana Moura. É uma voz que a faz viajar, que lhe dá aconchego. Precisa de a ouvir para entrar dentro de si. Para estar próxima de si. Algo que a faça lembrar quem é e de onde vem.
Reportagem de Tiago Teixeira, publicada originalmente no jornal Contacto
Quem é a Magaly?
“É a pergunta que eu mais detesto!”, responde, entre risos, antes de abrir a cortina da história de uma lusodescendente que cresceu no Luxemburgo, mas sempre sentiu que Portugal era a sua casa. A sua vida podia ser uma peça de teatro. Ou um filme. Ela faz parte da terceira geração de uma família de emigrantes portugueses no Grão-Ducado.
Primeiro chegou o avô materno. Vinha de Azenha Nova, uma pequena aldeia na Figueira da Foz, à procura de uma vida melhor. Trabalhou mais de quatro décadas no aeroporto. A mãe de Magaly só chegou depois, com apenas um ano, e já cresceu no novo país. O avô paterno também emigrou para o Luxemburgo para fugir à tropa. E o pai, de Alijó, chegaria já com 17 anos, depois de experiências nas vindimas em França.
Os pais de Magaly Teixeira conheceram-se embalados pela música no rancho folclórico Mocidade Portuguesa, do qual o avô era presidente. Casaram muito jovens, ela com 18 anos e ele sete anos mais velho. A mãe é cabeleireira e o pai é o responsável na área de frutas e legumes nos mercados para a Provençale. Vivem em Schouweiler, no sul, numa casa que construíram há 20 anos.
Magaly nasceu no Luxemburgo, um ano depois do casamento dos pais. É a mais velha de três irmãos. Hoje ela tem 31 anos. A irmã, hospedeira de bordo na Luxair, tem 28 e o irmão, que está a estudar Direito em Nancy, tem 21. Os três tiveram uma infância muito próxima de Portugal. “Primeiro através da escola portuguesa, porque ainda sou da geração em que os pais nem perguntavam aos filhos se queriam ou não. Era escola luxemburguesa de manhã e escola portuguesa à tarde”, recorda a atriz. Foi lá que começou a fazer teatro, tinha nove ou dez anos. A primeira peça foi a história da Carochinha e do João Ratão, para uma festa de Natal. Cresceu com a literatura, a gastronomia, a música portuguesa. E com as viagens de carro a Portugal, todos os meses de agosto.
Fez todo o percurso escolar no Luxemburgo. Aprendeu seis línguas. Teve uma infância muito ligada à arte. Praticou ballet e danças de salão durante 11 anos. Chegou mesmo a ponderar seguir a via profissional na dança, mas depois de obter o diploma de Gestão, decidiu ir para a faculdade em Paris, em 2010. Estudou comunicação, tradução portuguesa e teatro lusófono na Universidade Sorbonne. Foram três anos “à seca”, mas era um pedido dos pais. “Fui assim de cabeça para Paris, não estava nada preparada”, relembra. Na capital francesa conheceu a sua primeira encenadora e lá começou a carreira como atriz. Em 2013 foi para o conservatório Charles Munch e, durante quatro anos, aprendeu todas as técnicas do teatro clássico e contemporâneo. “É uma grande base da minha bagagem artística”.
Ao fim de oito anos em Paris, voltou para o Luxemburgo, em 2018. Desde então tem estado mais envolvida em projetos de cinema. “Isso também se deve ao facto de a produção de filmes ter crescido tanto no país”, explica. Participou em projetos como a média-metragem “Até para o ano”, do realizador lusodescendente Philippe Machado, e a série belgo-luxemburguesa da Netflix “Coyotes”, que lhe valeu a nomeação para melhor atriz nos Lëtzebuerger Filmpräis, os “óscares” do Grão-Ducado.
Porém, Magaly está “farta de estar” no país. “Tenho um sonho de vida que é ir viver e trabalhar em Portugal. Quero mesmo saber como é viver num sítio onde as pessoas são como eu, falam como eu. Gosto muito de estar no Luxemburgo, mas quero ir para casa”.
Oito anos em Paris
Apesar de ter nascido e crescido no Luxemburgo, Magaly teve uma educação muito portuguesa. “O meu pai cozinha muito bem e sempre quis transmitir-nos a cultura portuguesa através da gastronomia, da música. Sempre vimos televisão portuguesa em casa, os meus livros de criança sempre foram em português”, conta.
Magaly recorda o dia em que chegou a casa com o diploma do ensino secundário e encontrou o pai à espera com uma garrafa de champanhe. “Então e agora?”, perguntou ele. “Oh António, agora é para Paris!”, respondeu ela. E foi logo. Fez as malas e no dia a seguir os pais levaram-na de carro até França. “Não sabia em que sítio ia ficar, não percebia nada dos metros, fui à toa. São coisas que têm de ser feitas com aquela idade”, reconhece.
A ideia era ficar apenas três anos, tempo de terminar o curso de comunicação e teatro. Mas foi ficando. Esteve no Conservatório durante quatro anos. Envolveu-se em projetos, criou a companhia de teatro “Goûdu Theatre” e desenvolveu vários projetos, como “Brasserie”, de Koffi Kwahulé, que apresentou em teatros e festivais franceses de renome. E fez uma digressão, até chegar ao Festival de Avingon, o maior festival de teatro da Europa. No total, foram oito anos em França.
Em 2017, termina a sua formação como atriz profissional. Mais tarde, foi convidada a cantar fado numa das cenas do filme “Até para o ano”, do jovem realizador lusodescendente Philippe Machado. “O filme era muito autobiográfico, era mesmo a história do Philippe e a relação que a nossa geração tem com Portugal. Falamos durante horas, não foi bem um casting, e ele diz-me ‘se quiseres, a personagem é tua’”.
A sua personagem era a Flávia, que na vida real é a irmã do Philippe, revelou. Foi o realizador que pediu à atriz para cantar num momento em que está com os primos a descascar batatas para jantar e um deles diz: “Olha, anda lá, canta-nos um fado!”
Foi o próprio Philippe que escreveu o texto e o diretor de imagem, que também é músico, fez a melodia. “Na antestreia do filme, cantei quatro ou cinco temas de fado com o Joaquim Caniço, que é um grande guitarrista português, e o Miguel Braga, que já tocou com muitos artistas portugueses. Foi a primeira vez que cantei acompanhada e foi um dos momentos mais bonitos da minha vida. A família veio de Portugal, a sala estava cheia, foi uma noite de emoção”, relembra.
Estreia na Netflix
Magaly não sabe precisar o momento em que percebeu que queria ser atriz. Sabe apenas que sempre quis ir para Paris e estar na área da representação. “Não sabia como, porque na minha família ninguém vem desta área. Não sabia como lá chegar, mas o caminho foi-se fazendo”, reflete. Pensou muitas vezes em desistir, sobretudo durante a pandemia. “A época da covid foi muito difícil. Ainda não estava bem integrada no sistema luxemburguês e não tinha direito a nada. Mas depois chegou a oportunidade da série Coyotes”.
Chamaram-na para o casting. Era a primeira vez que a lusodescendente ia trabalhar com uma grande produção belgo-luxemburguesa, para a Netflix. “Primeiro mandei uma gravação e depois chamaram-me para conhecer os realizadores, o Jacques Molitor e o Gary Seghers. Cheguei lá, fiz a cena e eles olharam e disseram ‘ok, depois conversamos’, mas o Gary piscou-me o olho. Foi o meu primeiro grande projeto em televisão”, assinala.
A personagem que interpretou era Dona Valentini, uma “badass girl”. “Foi uma personagem que adorei. Tive muita sorte, porque o Jacques e o Gary deram-me muita liberdade para pôr Magaly dentro da personagem”.
Apesar de parecer uma jovem marginal, a Dona Valentini também tem um lado bom. “Cuida imenso dos irmãos, um deles com deficiência física, eles perderam os pais. Pude trabalhar imenso com a emoção e a equipa foi fantástica”, relembra. A série estreou primeiro na televisão belga e desde o início de dezembro está na Netflix. “Foi uma surpresa”, reconhece a atriz.
Além de “Coyotes”, Magaly vai ter uma outra participação numa série da Netflix, agora na segunda temporada da produção luxemburguesa Capitani, que estreia a 22 de fevereiro.
Também este ano, vai estrear no Luxembourg City Film Festival, em março, a curta-metragem “Nucléaire”, escrita por uma grande amiga de Magaly, a lusodescendente Roxanne Peguet.
Agora, Magaly quer voltar para Portugal. Para mostrar aos pais que o esforço que fizeram valeu a pena. Eles ainda estão no Luxemburgo, mas o pai entrou na reforma no fim do ano e “vão começar a passar mais tempo em Portugal”. Os avós já estão em Portugal. Voltaram para a aldeia na Figueira, depois de mais de 40 anos no Luxemburgo.
Magaly quer viver no Porto ou em Lisboa. Desde que não esteja longe do mar. “Sinto que depois destes anos todos longe, chego a uma idade em que penso que é mesmo ali que eu quero estar. É ali que eu quero ficar”. O destino o dirá. Como canta o “Desfado” de Ana Moura, o seu fado é não ter fado nenhum. Magaly, o palco é teu.