Portugal assumiu em janeiro a responsabilidade de conduzir alguns dos dossiês mais importantes desde a criação do projeto Europeu. Para António Gamito, esta presidência é uma oportunidade única para agir e colocar os cidadãos e o meio ambiente no centro das atenções. Em entrevista à Decisão, o Embaixador de Portugal no Luxemburgo aborda estas e outras questões, desde as implicações da pandemia na sociedade e nos negócios à situação particular dos portugueses no Grão-Ducado.
A agenda da presidência portuguesa é bastante extensa. Quais são as grandes prioridades?
O moto desta presidência é ‘tempo de agir’ com vista a uma sociedade mais justa, mais verde e mais digital. Herdámos bastantes dossiês da presidência alemã a que é preciso dar continuidade, mas nesta presidência vamos concentrar-nos sobretudo nos assuntos que mais dizem respeito às pessoas e as afectam, como a saúde (Covid-19), o ambiente e as alterações climáticas, a recuperação económica e o social. O pilar social europeu é aliás uma das grandes prioridades da presidência. É essencial apoiar as pessoas que viram os seus rendimentos afetados pela pandemia e inverter a curva do aumento da desigualdade.
O modelo social europeu está ultrapassado?
O modelo social do pós-guerra foi um dos pilares do desenvolvimento da Europa, mas desde então tem-se desgastado devido a vários fatores: a globalização e o neoliberalismo conduziram-nos por alguns caminhos fracturantes que é preciso retificar. Temos de dar um novo sentido ao modelo social europeu, às relações entre pessoas, as empresas, os sindicatos e as próprias instituições públicas, com base nos desafios atuais. Em maio, no Porto, por altura da cimeira social, gostaríamos de ver um plano de ação aprovado.
Acredita que os dossiês mais importantes desta presidência possam ficar fechados durante os próximos seis meses?
Há dossiês que serão fechados e outros que vão continuar para além da nossa presidência. O digital e o verde são objectivos gigantescos que não se podem resolver em seis meses.
Portugal vai ter a responsabilidade de coordenar a transposição para o terreno do Plano de Recuperação e Resiliência a nível europeu. Está confiante que o dinheiro vai chegar às empresas e à economia a tempo de evitar um desastre?
Espero que as três principais tarefas que faltam realizar – regulamentação da chamada ‘bazuca europeia’ (750 mil milhões de Euros aprovados para combater a pandemia, recuperar a economia e mitigar o desemprego), a sua ratificação pelos Parlamentos nacionais dos Estados-membros e a aprovação por Bruxelas dos planos nacionais para a aplicação dessas ajudas) – sejam concretizadas o mais rapidamente possível, aliviando a pressão sobre os orçamentos nacionais. Depois cabe a cada governo fazer o que lhe compete para agilizar a aplicação desses fundos.
Mesmo nos países mais ricos, como o Luxemburgo, há muitas empresas em situação dramática. O que é que essas empresas podem esperar da presidência portuguesa?
Tenho acompanhado de perto a situação no Luxemburgo, nomeadamente no que diz respeito à evolução das falências e do desemprego. O setor da construção civil, onde trabalham muitos portugueses, tem sido um dos mais afetados e o desemprego parcial por si só não chega para resolver todos os problemas. É preciso ter a noção de que as ajudas que o Estado poderá dar às empresas nunca serão suficientes para compensar totalmente a quebra de atividade. Mesmo os Estados com mais disponibilidade financeira, como o Luxemburgo, não podem manter as economias a funcionar artificialmente durante muito tempo. O nosso objectivo é, portanto, de fazer chegar o mais rapidamente possível as verbas comunitárias aos diferentes Governos europeus para reverter a crise económica, o desemprego e construir um novo paradigma harmonioso entre a economia e o social.
No setor da restauração, a situação é especialmente crítica com centenas de empresas afundadas em dívidas que nunca vão conseguir pagar…
Compreendo o desespero das empresas que se queixam que as ajudas não cobrem todos prejuízos. Mas o dinheiro dos contribuintes não é infinito. Na minha opinião, dada a importância do sector na economia, os governos, os representantes patronais do sector e os sindicatos devem poder analisar novas medidas de apoio. Mas o sector tem que ter em conta a situação pandémica e as diretivas das autoridades de saúde. Estou convencido que este assunto só vai ficar resolvido quando a pandemia for controlada.
Em 2020 o desemprego aumentou menos do que se chegou a temer, mas o pior poderá ainda estar para vir…
Para já, a situação mais preocupante é a dos trabalhadores com contratos temporários e vínculos precários. Foram estes os principais sacrificados no último ano. O sistema social no Luxemburgo tentou “dar a mão” a muitas situações, mas escaparam outras, o que mostra também os seus limites. Os sindicatos aqui têm um papel muito importante para negociar soluções para os trabalhadores desprotegidos. Como diz, se a pandemia não for controlada o pior ainda pode estar para vir.
A comunidade portuguesa pela natureza dos trabalhos que ocupa está mais exposta à pandemia e acaba por assumir uma maior responsabilidade na execução de serviços essenciais. Existe essa consciência por parte da população em geral e do governo em particular?
Por parte do governo luxemburguês sinto que há esse reconhecimento. Participei recentemente numa celebração onde esteve presente o Grão-Duque e alguns governantes onde foi feito esse elogio. Existe a consciência de que os portugueses estão na linha da frente pela natureza dos empregos que ocupam, mas não me parece que a população, de um modo geral, tenha essa noção enraizada. O exemplo, a necessidade e o tempo mudarão este estereótipo.
Mas quando chega a hora de recompensar esses sacrifícios, esse reconhecimento muitas vezes não acontece…
No Luxemburgo temos um problema que tem a ver com os setores de atividade onde estão concentrados os portugueses. Não todos, mas uma parte importante da nossa comunidade integra segmentos de atividade que, embora sejam melhor remunerados do que em Portugal, não são tão bem pagos como os restantes empregos no Luxemburgo. Mas isso é uma questão que depende sobretudo das organizações sindicais que defendem os interesses dos seus membros. É natural que uma trabalhadora das limpezas não ganhe tanto como um médico, mas se calhar a diferença podia não ser tão grande. Durante a pandemia as trabalhadoras das limpezas (a grande maioria são mulheres), os trabalhadores dos supermercados, assim como o pessoal de saúde português mostraram o seu valor no desempenho das suas atividades que permitiram a concretização dos confinamentos para o controlo da pandemia. Isso deve ser sublinhado.
Esta presidência coincide com o início da vacinação contra a Covid-19. Acredita que todas as pessoas prioritárias estarão vacinadas até ao final do primeiro semestre como estava inicialmente previsto?
As pessoas que estão na frente de combate e as mais idosas penso que sim, desde que aceitem ser vacinadas e compareçam às marcações. Segundo as informações que tenho recebido, há muitas pessoas que recebem o convite e não comparecem. Ora, se não nos vacinarmos todos não contribuímos para a imunidade de grupo e a pandemia não vai desaparecer.
Por outro lado, as vacinas também não chegam com a velocidade com que se pensava. Neste contexto, a manutenção dos gestos barreira vai-se manter durante mais algum tempo e a coordenação de todos estes aspetos, nomeadamente ao nível da União Europeia, vai ser decisiva para controlar a pandemia.
O problema são as dúvidas relativamente aos efeitos secundários?
Até uma aspirina pode ter sequelas e não é por isso que a deixamos de tomar. A vacina foi devidamente testada e autorizada por entidades reguladoras da saúde na União Europeia. Se queremos ver-nos livres desta pandemia temos de nos vacinar. A meu ver há outras questões que subsistem e que é importante não perder de vista. Ainda não sabemos exatamente por quanto tempo a vacina é capaz de imunizar. É preciso perceber quanto tempo é que ela atua ao mesmo tempo que vamos avançando com a vacinação de forma a evitar que as pessoas que foram vacinadas primeiro percam a imunidade e entremos num ciclo vicioso.
A ministra da Saúde luxemburguesa mostrou-se disponível para receber pacientes de Portugal se fosse necessário.
O Luxemburgo disponibilizou-se para ajudar Portugal numa altura em que o país atravessa uma situação crítica. Por isso, estamos reconhecidos. Paulette Lenert para além de ser uma pessoa fantástica é uma ministra excecional. Afirmou que se o governo português pedisse estavam dispostos a acolher pacientes. Assim como o Ministro dos Estrangeiros, Jean Asselborn, que reiterou essa vontade em resposta a uma questão parlamentar.
Houve contactos diplomáticos nesse sentido ou foi mais uma demonstração de solidariedade?
Transmiti a oferta ao meu Governo, mas ainda não houve uma resposta concreta. Existem condicionantes como a língua, a distância, o tipo e estágio de Covid-19 do paciente, as capacidades disponíveis luxemburguesas que importa considerar. Independentemente do que vier a acontecer, essa disponibilidade foi transmitida, o que nos sensibilizou bastante.
Esta crise é uma oportunidade para vivermos de outra forma?
Temos de alterar o paradigma económico e social em que funcionamos e ao mesmo tempo melhorar a qualidade de vida dos cidadãos, tentando minorar desigualdades que limitam a possibilidade de se estabelecerem novos e duradouros contratos sociais. Se não mudarmos de rumo estaremos a criar sérios problemas para as gerações vindouras não só à escala europeia, mas mundial. O estabelecimento de uma nova relação laboral, incorporando o digital e sem deixar ninguém para trás, a diminuição dos efeitos adversos das alterações climáticas, nos termos das metas de Paris e a transição energética são questões que não acabarão com a nossa presidência da União Europeia, mas que são fundamentais para a qualidade de vida das pessoas.
Para a União Europeia, Portugal representa uma ponte para a América Latina e para África. O próprio Luxemburgo tem demonstrado interesse em explorar esses laços. O que é que está previsto nesse sentido?
Nesta presidência temos a possibilidade de relançar estrategicamente a posição da União Europeia no mundo devido à universalidade portuguesa, potenciando os excelentes contactos que temos com diversas regiões do mundo. Queremos organizar uma cimeira com a Índia no Porto no quadro da região Indo-Pacífico, vamos aproximarmo-nos da América Latina, de forma a tentar ultrapassar os obstáculos que impedem o acordo UE-Mercosul de avançar e não deixaremos de dar os passos necessários para viabilizar uma próxima cimeira UE – União Africana. Relativamente aos EUA vamos aproveitar o regresso da racionalidade e dos valores que partilhamos com a investidura de Biden para retomarmos o diálogo transatlântico em todos os seus aspectos. Queremos recuperar confiança e a relação séria e franca que tínhamos. Metade do comércio mundial é feito pela UE e pelos EUA. São dois motores incontornáveis do desenvolvimento mundial do seculo XXI, estamos ‘condenados’ a trabalhar juntos.
Em 2020 estava prevista uma missão económica luxemburguesa a Portugal. Ainda é de atualidade?
Em maio do ano passado estava agendada uma missão económica luxemburguesa a Portugal integrada na visita de Estado do Grão-Duque Henri e de vários Ministros do Governo Bettel. Com a pandemia essa visita acabou por ser adiada. Temos esperança e trabalhamos no sentido de que venha a realizar-se este ano. O tema será retomado depois das eleições presidenciais e tendo presente o calendário da nossa presidência da UE.
Citações
“A globalização e o neoliberalismo conduziram-nos por alguns caminhos fracturantes que é preciso retificar”
“Durante a pandemia as trabalhadoras das limpezas (a grande maioria são mulheres), os trabalhadores dos supermercados, assim como o pessoal de saúde português mostraram o seu valor no desempenho das suas atividades que permitiram a concretização dos confinamentos para o controlo da pandemia. Isso deve ser sublinhado”
“Temos de alterar o paradigma económico e social em que funcionamos e ao mesmo tempo melhorar a qualidade de vida dos cidadãos”