Quando é que veio para o Luxemburgo?
Já nasci cá, os meus pais vieram para o Luxemburgo no final dos anos sessenta. Fizeram parte da primeira vaga a chegar. Fiz a escolaridade aqui com todas as dificuldades e desafios que isso significava. O que os meus pais queriam era que eu, o meu irmão e a minha irmã nos portássemos bem.
E portaram-se?
Dei o meu melhor e fiz uma formação na venda, mas o problema para nós portugueses era o alemão. Na altura era o nosso travão. No final do ensino primário nem aos exames íamos, o nosso futuro (não acredito no destino) já estava traçado. Decidi candidatar-me na mesma a um liceu e quase consegui entrar.
Fui para um curso preparatório para melhorar as médias e voltar a tentar entrar para o liceu e acabei por conseguir. Acabei por fazer um curso de desenhador projetista e depois de desenho e pintura, um curso que fiz à noite. Era uma profissão mais artística. Tinha jeito e cheguei a fazer exposições em galerias de arte e na antiga prisão “Tutesall”, no Grund, mas não foi uma época fácil. Ainda andava à procura do meu estilo, o que me causava uma certa frustração.
Foi nessa altura que decidiu trocar a arte pelo comércio?
Quando comecei a exercer uma profissão mais terra-a-terra essa veia artística ficou de lado.
Vim parar a este ramo por sorte ou por azar, não sei. Fui vítima de um acidente grave de viação com um carro que perdeu o controle e na sequência desse acidente foi-me proposto um lugar de vendedor numa garagem, em 1991.
Comecei por ser vendedor de carros novos e rapidamente fui subindo de escalão. Passado pouco tempo já era responsável das vendas e depois de todo o departamento de compras e vendas. Trabalhei nessa empresa durante nove anos antes de decidir estabelecer-me por conta própria.
O que é que o motivou para abrir a sua empresa?
Quando a minha esposa ficou grávida pensamos numa forma de termos mais tempo para a nossa filha. A empresa foi criada para manter a família junta e, assim que o negócio começou a estabilizar, a minha esposa veio trabalhar comigo. E se era para trabalhar tanto, então preferia fazê-lo para mim.
O início foi complicado?
Eu sabia como gerir o negócio, mas os meus pais não tinham posses para me ajudar. Tinha bons clientes que acreditavam em mim e dois deles foram determinantes. Um era engenheiro e fazia pavilhões e acabei por conseguir preços muito acessíveis. O outro tornou-se o meu banqueiro e dispôs-se a emprestar-me os fundos necessários para esse projeto. Fui ver uns contentores e comprei os dois para os modificar em três e transformar em escritórios.
Havia algum elemento diferenciador em relação aos restantes stands?
O conceito era, para além de carros de qualidade, um parque aberto, com toda a informação disponível na frente do carro. Tudo transparente, o cliente passa na estrada, vê os carros em exposição e passa entre carros, até mesmo dentro do próprio veículo, com toda a informação à vista e se estiver interessado contacta o vendedor.
E funcionou de imediato?
No primeiro ano, só comigo e a minha esposa a ajudar, conseguimos vender 220 carros. Seis meses após a abertura, comprei duas páginas no jornal Luxbazar. Uma página mostrava o sítio sem nada, com um grande ponto de interrogação e na outra página a frase: “seis meses depois 100 carros vendidos”.
Mas não foi fácil. Naquela altura os usados não eram um negócio bem visto, as pessoas só queriam carros novos.
Criamos a empresa na mesma altura em que a União Europeia obrigou a dar uma garantia de um ano nos veículos usados e nós já estávamos preparados para isso. Hoje vendemos cerca de 900 automóveis por ano, a nossa equipa é constituída de 20 pessoas, o nosso volume de negócios é de 24 milhões de Euros. Oferecemos serviços pós-venda tais como mecânica e carroçaria, aluguer e guarda de carros clássicos e de coleção.
Foi complicado conseguir o espaço para o stand?
Só compramos o terreno passados três anos. Não foi nada fácil convencer os bancos e a Comuna, no início, não nos queria vender o terreno. Tive de ser muito criativo e persistente. A estrada que vai passar por trás do nosso parque já está projetada há uns 30 anos e quando estiver pronta ficamos com duas grandes frentes para a rua.
10 anos depois do nosso começo, fomos obrigados a aumentar. Nessa altura já sabia que ia fazer serviço pós-venda e contruímos um pavilhão com três andares e 1.100 m2. Entretanto compramos um segundo terreno ao lado do primeiro. Atualmente temos uma área de cerca de 8 mil metros quadrados. As decisões que fomos tomando ao longo dos anos foram decisivas para o crescimento da empresa. Se tivesse tomado as decisões erradas poderíamos ter perdido tudo.
As decisões estratégicas geralmente também acarretam riscos importantes…
Nadei sempre contra a corrente. Gosto da antecipação. Quando os outros tinham medo e retraiam-se, eu investia. E quando as coisas voltavam a melhorar e vinha uma grande procura eu estava preparado. Tínhamos uma oferta que os outros não tinham. Como é que eu sabia? Não sabia, era a minha intuição. O facto de ter antecipado certas coisas fez com que esteja financeiramente melhor do que muitos concorrentes. Para quem precisa de dinheiro nestas alturas de crise é mais complicado.
Foi intuição ou visão?
Não sei se é intuição ou visão, mas sei que certos empresários conseguem prever coisas que os outros não conseguem por serem visionários. Por exemplo, temos patrocinado atletas antes de serem conhecidos e que mais tarde vieram a dar cartas. O piloto Dylan Pereira é um exemplo. É um talento que já nasce com a pessoa.
Também é importante saber resistir às crises…
As crises fazem parte do percurso de qualquer empresa. Assim que comecei o projeto surgiram logo variantes que ninguém esperava. Comecei em maio e quatro meses depois houve os atentados nos Estados Unidos, com um grande impacto a nível mundial. A seguir veio o euro. Depois de uns anos mais calmos, veio a crise financeira…
Em situações destas, onde se nota o maior impacto são nas grandes despesas, como na compra de um carro.
Depois veio o Covid, que foi um período muito complicado, com muitas dúvidas. Foi necessário ser muito forte psicologicamente.
Na fase de maior crescimento da empresa, também foi complicado encontrar os colaboradores certos e ter de reconstituir uma equipa de um momento para o outro. Nesta profissão e por falta de mão de obra qualificada no Luxemburgo, é muito complicado substituir as pessoas.
Como é que ultrapassou esses momentos?
Sou uma pessoa religiosa, sabemos que as coisas vão complicar-se, a bíblia antecipou isso e não fico contente de estar a vivê-lo, mas tenho fé que é uma tormenta antes de algo melhor. Isso dá-me esperança e alguma tranquilidade.
A religião, a fé, os valores, deram-me força. Se não tivesse raízes fortes não tinha aguentado certas coisas. Acredito que os humanos precisam de algo mais do que comer e beber e bens materiais. Esta crença numa outra vida melhor ajuda-nos a relativizar os problemas e as fases mais difíceis que vão surgindo.
Talvez, hoje em dia, não seja muito popular pensar assim, mas já estou habituado. O que os outros pensam interessa-me pouco, tenho levado a minha vida com princípios cristãos e isso tem guiado a minha conduta e tem-me preservado de certos problemas e desilusões.
A sucessão da empresa está assegurada?
Tenho uma filha que terminou o ensino secundário e esteve aqui quase cinco anos como comercial. Em seguida trabalhou dois anos no Estado e em janeiro decidiu voltar para cá, sendo atualmente responsável pelo marketing.
Nunca houve a pretensão de ela ficar com o stand, nem nunca foi a sua ideia ficar com este peso todo. Nós queremos o melhor para os nossos filhos e ser independente e ter de encontrar soluções para todas estas crises não é fácil e não é “o melhor”. Empresas grandes com muitos empregados dão muitas dores de cabeça. Vamos continuar mais uns anos, mas já temos projetos para o futuro.
Em Portugal?
Portugal é um país maravilhoso, mas há coisas que me entristecem. Quando nasces aqui, mas és filho de emigrantes, acabas por ser estrangeiro nos dois países. Mas gosto muito de Portugal e tenho feito alguns investimentos lá. Recuperei a casa da prima da minha mãe, a tia Clara, na Afurada, que criou a minha mãe e a sua irmã como se fossem filhas. Tinha esse dever. Há sonhos de criança que quando se concretizam têm muito mais valor.
Continua a sonhar?
Tenho muitas paixões, desde os carros clássicos, que restauro, à aviação. Durante o início da minha empresa, para tirar o brevet de piloto, acordava todos os dias às 4:30 da manhã para estudar. Aprendi com o meu pai, a fazer tudo e quando me lanço num projeto não é o dinheiro que me move. É o projeto, o desafio, inventar soluções, superar os obstáculos, é isso que me move. Às vezes o que falta ao ser humano é acreditar mais em si e colocar-se desafios.
De que mais se orgulha neste percurso?
O meu maior orgulho não é ter a empresa há 22 anos. É ter um casamento feliz há 32 anos, termos construído tudo isto juntos, a minha esposa e eu e termos criado a nossa filha Jo com valores nobres - esse é o meu grande orgulho. Os bens materiais são coisas que vêm e vão. As nossa convicções, a família e os amigos são as verdadeiras riquezas neste mundo e é isso que é necessário cultivar e prezar.